sábado, 5 de fevereiro de 2011

Saara Ocidental: Por uma autodeterminação verdadeira

Publicado originalmente no Inter Relações numero 16 - Nov/2004

SAARA OCIDENTAL: POR UMA AUTODETERMINAÇÃO VERDADEIRA

No século XIX o continente africano esteve em evidência para a maior parte dos Estados europeus que possuíam interesses, sobretudo econômicos, na região. Passado esse período colonialista, a África foi relegada ao segundo plano, e pouco se conhece sobre a região, sendo que o que freqüentemente é divulgado pela mídia refere-se a fome, massacres étnicos e outros distúrbios de natureza sócio-econômica. Entretanto, o Maghreb, região no norte da África, que em árabe significa Ocidente e “cujos limites históricos, no litoral, são a Tunísia, a leste e o Rio Senegal a oeste. Quanto ao interior, eles se perdem nas areias do grande deserto” (Santayana, 1987:41), é palco de alguns fatos históricos e políticos pouco divulgados.

Ao se falar em continente africano o que se tem gravado no imaginário geral é a impressão de pobreza e miséria total, onde a vida subsiste a duras penas. Essa situação existe de fato, porém, os Estados que compõem o continente são como os demais no resto do mundo, ou seja, possuem crises financeiras, conflitos armados, disputas políticas e territoriais, e lutas por independência.


Partindo desse ponto de vista, pode-se citar, como exemplo de Estado que luta por sua afirmação, o Saara Ocidental, localizado no norte da África. O território possui 286.000 quilômetros quadrados, “seu litoral tem franjas de boa fertilidade e as águas territoriais guardam um dos mais ricos bancos pesqueiros conhecidos. Mesmo o deserto não se faz só de areia. Há nele, reservas imensuráveis de fosfato, minério de ferro, terras raras, gás e petróleo (Arraes, 1987:11).

Além desses atributos naturais o norte da África possui importância estratégica reconhecida desde que os fenícios ali estabeleceram sua base para o controle comercial do Mediterrâneo. O território, antiga colônia espanhola, foi mantido até a morte do ditador Francisco Franco, ocasião em que passou para o controle do Marrocos e da Mauritânia, pela assinatura de um acordo entre os três países, estabelecendo a partilha do antigo Saara Espanhol, entre os dois últimos.

Em 1974 o regime monárquico do Marrocos, enfrentava a oposição do país que clamava por reformas. Além da situação política instável, acrescente-se uma grave crise econômica que causava fortes impactos na qualidade de vida da população marroquina. Utilizando o mesmo estratagema que Bismarck aplicou na Alemanha, o rei Hassan II transformou a anexação do Saara em peça-chave da política do Marrocos para aplacar os ânimos internos.

Contando com o apoio do então Secretario de Estado norte-americano Henry Kissinger e do Presidente francês Giscar D’Estaing, Hassan II organizou a ‘Marcha Verde’, que consistiu no envio, para além das fronteiras marroquinas, de milhares de miseráveis para o Saara Ocidental, diante das vistas de jornalistas de vários países ocidentais.

Para Santayana “a invasão do Saara Ocidental em outubro de 1975 foi provocada não apenas pelo desejo de Hassan II de manter, desesperadamente, o regime monárquico alauita1 no poder, mas também de manobras franco-norte-americanas de ampliação de sua estratégia de controle sobre o norte da África” (1987:73).

As ações conjuntas do Marrocos e da Mauritânia visavam desde o início usar o terror como forma de quebrar a resistência da população e praticou-se uma política de genocídio, de forma a eliminar o problema diplomático, pela simples negação da existência de população no território, e, principalmente, de um povo com características étnicas e culturais próprias, e organização política próprias (Santayana, 1987).

Organizados em forma de guerrilha, os saarauis2 promoveram e promovem ataques contra os invasores, levando, apesar da menor capacidade militar, vantagem sobre eles. Além desse fato, sob o comando da Frente Polisário, órgão da resistência saaraui, foram realizados ataques, bem sucedidos, dentro dos territórios de seus contendores, fazendo com que o conflito transbordasse e não ficasse restrito somente aos limites do Saara Ocidental.

Apesar de ser uma república constituída desde 27 de fevereiro de 1976, sob o nome de República Árabe Saaraui Democrática, não foi reconhecida oficialmente por vários países. Somente após seis anos de lutas e várias derrotas, o rei Hassan II, em 1981, propôs durante a reunião de cúpula da OUA (Organização da Unidade Africana), reunida em Nairobi (Quênia), a realização de um referendum livre, sob o controle internacional, para que a população do Saara Ocidental decidisse sobre a legitimação da presença marroquina ou seu repúdio.

Com base nesta proposta, a OUA formou  um Comitê de implementação, que conseguiu, durante suas sessões de agosto de 1981 e de fevereiro de 1982, fixar as modalidades do referendum, com a ajuda de especialistas da ONU. Infelizmente, por uma série de detalhes, entre eles o fato de que a República Árabe Saaraui Democrática se fez representar na OUA, contra os desejos do Marrocos, as negociações foram interrompidas.

Com o fracasso da solução africana, o Secretário Geral da ONU ofereceu sua intermediação em 1985. Esta iniciativa o fez formular algumas propostas de conciliação, que foram  apresentadas às partes em 11 de Agosto de 1988 e aceitas por ambas em 30 de Agosto do mesmo ano. Desde então a ONU encontra-se envolvida tentando por suas resoluções, fazendo-se representar por sua Missão para o Referendo do Saara Ocidental (MINURSO), na tentativa de concluir as negociações que definam os parâmetros para a realização de tal referendum. Entretanto, segundo Guilherme Casarões, “não obstante, Marrocos ainda luta pela mudança dos critérios de votação, criando formas de adiar o processo, que já foi postergado nada menos que doze vezes” (2003:9).

O povo saauri prossegue com sua luta pelo direito de autodeterminação dos povos e reconhecimento de sua independência, que em alguns casos (quando os interesses de determinados países não estão envolvidos) é resolvido de forma mais rápida, evidenciando que “a farsa do processo de descolonização do Saara Ocidental representa, no contexto da história do século XX, uma das mais terríveis manobras já montadas contra os interesses de um povo do Terceiro Mundo, e a primeira da qual participam, de forma ativa, duas ex-colônias, a Mauritânia e o Marrocos” (Santayana, 1987:75).


Referências Bibliográficas
ARRAES, Miguel. Prefácio, in SANTAYANA, Mauro. Dossiê da Guerra do Saara. Paz e Terra, São Paulo, 1987.
CASARÕES, Guilherme. Marrocos e a Questão Saarauí: mais uma luta pela autodeterminação, in O Debatedouro, edição de 24 de maio de 2003-Ano II-26ª. Edição.
SANTAYANA, Mauro. Dossiê da Guerra do Saara. Paz e Terra, São Paulo, 1987.
1 Casa governante do Marrocos.

2 Etnia nativa do Saara do Ocidental.

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