sábado, 5 de fevereiro de 2011

A Questão Armênia

 Publicado originalmente no Inter Relações numero 13 - Abr/2004


A QUESTÃO ARMÊNIA



Dados Gerais:
Nome: República da Armênia (Hayastani Haurapetut’yun)
Capital: Yerevan População: 3,5 milhões Área: 29.800 km2


O império otomano, que um dia chegou às portas de Viena, desde meados do século XIX vinha se esfacelando gradativamente com seus territórios, um após o outro conquistando independência, restando em 1908, somente as regiões da Trácia e da Macedônia. Segundo Rodrigues, "além de sua incapacidade para impedir o esfacelamento do império, o sultanato também não tinha condições de conter a presença cada vez maior das grandes nações européias em seus territórios" (1994:29).

Em 1908 um grupo de oficiais do exército, que se autodenominavam jovens turcos, encabeçou um movimento em prol da regeneração nacional, que apesar do discurso liberal não alterava em nada o tratamento dado para as minorias existentes no império. Afirma Rodrigues que os jovens turcos “passaram a oprimir ainda mais as etnias não turcas, alegando que a centralização era necessária para a plena efetivação das reformas socais por eles alardeadas” (1994:30). Some-se a esta situação, o deslocamento de populações turcas, que habitavam as regiões que conquistaram sua independência, sobretudo dos Bálcãs, para o interior da Turquia.

Enfraquecida por sua situação de instabilidade interna e buscando fortalecer sua posição no cenário internacional, a Turquia aliou-se à Alemanha que se destacava como ator influente no sistema de equilíbrio de poder europeu. Em 1914, a situação de atrito que vinha se prolongando há vários anos atingiu seu clímax com a eclosão do conflito armado – a Primeira Guerra Mundial – envolvendo a Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e Turquia) e a Entente (Inglaterra, França e Rússia).

Usualmente o período compreendido entre 1914 e 1918 é associado à Primeira Guerra Mundial, porém conforme o general prussiano Carl von Clausewitz detectou, a guerra não é um evento estanque, outros acontecimentos ocorrem no interior dos Estados beligerantes enquanto o conflito se desenvolve com outros Estados.

Este artigo pretende, discorrer sobre um destes acontecimentos, ocorrido no interior de um dos Estados beligerantes, a Turquia, e que foi em certa medida relegado ao segundo plano devido o conflito armado que se desenrolava no resto do mundo.

Durante o ano de 1915, ou seja, em plena Primeira Guerra Mundial, o governo turco promoveu agressões contra o povo armênio, na ocasião um dos muitos povos que compunham, graças a conquistas, anexações e invasões, o império turco.

A Armênia, Estado situado no extremo leste europeu, mais precisamente no “labirinto de elevadas montanhas entre os mares Cáspio, Mediterrâneo e Negro” (Toynbee et Bryce, 2003:25), possui língua e escritas próprias que remontam ao século VI a.C., tendo sido o primeiro país a adotar o cristianismo como religião oficial no ano 301 de nossa era. Dada sua localização geográfica, considerada estratégica, pois se encontra na confluência dos continentes europeu e asiático, o país foi freqüentemente disputado e repartido por vários impérios: árabe, bizantino, persa, otomano e finalmente o russo, sendo que na ocasião cerca de 1,2 milhão de armênios encontravam-se sob o domínio turco.

Tendo em vista esta situação de dominação que se encontravam, ficavam sujeitos às leis e abusos turcos, conforme afirma o historiador inglês Arnold Toynbee, os armênios “eram tratados como raça avassalada e privados do direito de usar armas, condição que em um país desregrado, os deixava facilmente expostos à mercê dos seus vizinhos muçulmanos” (2003:27).

Na esteira dos acontecimentos, em janeiro de 1915, o governo turco resolve desarmar os soldados e policiais armênios que haviam se alistado voluntariamente para combater os inimigos do império, segundo Aharon Sapsezian (1988), sua função passou a se limitar às obras de construção de estradas e limpeza pública, subordinados à tropa.

Dessa forma começava-se a por em prática os planos do governo turco, que conforme afirma Toynbee, “o projeto era nada menos do que o extermínio de toda a população cristã dentro das fronteiras otomanas” (2003:32). Entenda-se por população cristã, a população armênia.

Teve início diligências em todas as localidades onde havia armênios. O modus operandi era praticamente idêntico: os governadores, amparados pela guarda da cidade, intimavam todos os homens (armênios) aptos1, que estavam isentos do serviço militar a se apresentarem, após o que eram conduzidos para fora da cidade pela guarda. Fora das cidades a guarda que os acompanhava era reforçada por bandidos que haviam sido libertos e bandos de curdos, que na primeira oportunidade favorável realizava a matança.

Dessa forma, o elemento de resistência que poderia haver por parte da população armênia era elminado, restando somente as mulheres, velhos e crianças que recebiam ordem de deportação imediata dentro de determinado prazo, que não ultrapassava nunca 15 dias. " Famílias inteiras tinham que ser arrancadas de seus lares e expulsas para destino desconhecido,  enquanto as suas casas e bens eram transferidos para muçulmanos" (2003:33). Tinha início então a marcha forçada desta população, que seguia sob a guarda de grupos de curdos e de bandidos, que ao longo do caminho iam infligindo sevícias aos deportados.

O destino destes deportados era uma nova colônia agrícola, situada no meio do deserto da Síria. Muitos caiam de fome, fraqueza ou doença e eram abandonados ao lado das estradas; mulheres eram estrupadas ou vendidas como escravas; crianças em idade tenra eram tiradas de suas mães e enviadas para instituições de fanáticos muçulmanos para serem criadas segundo os preceitos da fé muçulmana. Ao final da jornada eram poucos os que conseguiam completar o caminho. Os tormentos desses deportados eram ainda complementados pela diferença climática existente entre a região em que viviam, o planalto Anatólio, de clima temperado e a seu destino, as planícies da Mesopotâmia, de clima tropical.


De uma população de 1,2 milhão, 800 mil foram dizimados. Vale ressaltar que não houve provocação por parte dos armênios para que tais ações fossem tomadas em seu detrimento. Quando interpelado sobre as deportações, o governo turco alegou que promoveu tal ato em defesa própria, para se salvaguardar de possíveis alianças que os armênios poderiam realizar com os russos para ataque em seu território. Toynbee desmente essa possibilidade de justificativa quando afirma que, “não havia possibilidade de cooperarem com os exércitos da Entente, e era igualmente impossível que tentassem uma insurreição por si só, pois não constituíam uma comunidade compacta” (2003:69).

É o mesmo historiador que apresenta a justificativa mais provável para tal ato: “no meio de uma população turca bastante estúpida e conservadora, o seu gênio comercial facilitou-lhes, por assim dizer, o monopólio do comércio e um quinhão de tamanho correspondente ao da riqueza do país” (2003:27). A esta análise pode ser acrescido também o desejo manifesto de independência que a população armênia alimentava.

Vista por esta ótica é possível aventar-se uma provável explicação para a ação turca, o extermínio da população armênia visava evitar a perda de outros territórios, bem como o confisco de seus bens para favorecer as populações muçulmanas que haviam se deslocado dos territórios que se desvincularam do império.

Com o fim da guerra, a Turquia teve seu vasto império reduzido às dimensões atualmente conhecidas. Os sobreviventes desse episódio emigraram para as mais diversas regiões do globo, gerando a diáspora armênia, que desde então tem lutado para o reconhecimento do genocídio perpetrado contra seu povo. Entretanto, até hoje o genocídio armênio não é reconhecido pela Turquia, que conforme afirma Varujan Burmaian, “o entendimento mediano desse comportamento faz concluir que a Turquia persevera na mesma linha de conduta aos autores daqueles crimes” (2003:14).

Felizmente a consciência mundial tem se manifestado, reconhecendo o genocídio armênio: a duma da Rússia, o senado belga, a homenagem prestada pelo presidente francês François Mitterand em 1984 aos armênios da França, o parlamento europeu que em 1987, exortou o governo turco a reconhecer o genocídio contra os armênios em 1915, e mais recentemente, em 2001, a resolução da Assembléia Nacional da França que reconheceu como “genocídio o massacre de armênios ocorrido dentro do território do império otomano” (Burmaian, 2003:14). Sobre a luta de sobrevivência e reconhecimento do povo armênio, resta acrescentar somente as palavras de Aharon Sapsezian: “sua vocação sempre foi a de reinventar a existência, a fim de ser e de continuar a ser perenemente” (1988:141).


Bibliografia:

ARLEN. Michael J. Passagem para Ararat. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
BURMAIAN. Varujan, Prefácio. In Toynbee. Arnold et Bryce. Lorde James. Atrocidades Turcas na Armênia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2003.
RODRIGUES. Luiz César B. A Primeira Guerra Mundial. São Paulo, Atual Editora, 1994.
SAPSEZIAN. Aharon. Historia da Armênia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
TOYNBEE. Arnold et BRYCE. Lorde James. Atrocidades Turcas na Armênia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2003.

1 Toynbee (2003) descreve o termo aptos, como sendo de interpretação ampla, pois incluía todos os varões com idade entre 15 a 70 anos.


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