segunda-feira, 21 de março de 2011

Um Espectro Chamado Alemanha? - Formação Nacional e Expansionismo Germânico

Artigo publicado no Livro Politicas e Conflitos Internacionais. Ed. Revan 2004.



A Alemanha não é fácil de explicar. Nem se trata só do problema de se enveredar por eu passado recente, que apesar dos esquemas mentais consagrados ainda oferece enorme campo aberto à reflexão”. Günter Wallraff


Desde seus primórdios como Estado organizado, tomando-se como ponto de partida sua unificação por meio de guerras e posteriormente seus avanços tecnológicos, poderio econômico, militar e naval, a Alemanha pôde ser considerada como um agente desestabilizador do equilíbrio europeu, tornando-se conseqüentemente uma ameaça aos seus vizinhos. Segundo Kenneth Waltz (1.979), num sistema multipolar, que era o sistema vigente no final do século XIX e início do XX, cada ator procura realizar seus objetivos estratégicos sem recorrer à guerra, utilizando-a somente como ultima ratio para a proteção dos seus interesses, porém a guerra, quando utilizada, visa a realização de objetivos e não a eliminação de outro ator, pois o número de atores está relacionado ao equilíbrio do sistema. Esse sistema recusa ainda um órgão supranacional e não cria a possibilidade de hegemonia, além de reintegrar os vencidos no sistema internacional, a fim de evitar a formação de bipolaridades.

Ocorre que o temor que a Alemanha inspirava em seus vizinhos favoreceu o surgimento de alianças de defesa mútua que comprometeram o sistema de equilíbrio existente até então. As alianças originaram dois pólos antagonistas. Com a instauração desses blocos antagônicos, uma situação de fricção foi configurada e diante da instabilidade que essa situação proporcionou, as mínimas provocações passaram a servir como fatores de atrito entre as partes, acumulando-se, até o ponto em que um acontecimento remoto, que nenhum dos atores considerou significativo, serviu como estopim para a eclosão do conflito armado.

A Primeira Guerra Mundial trouxe consigo enormes avanços tecnológicos, porém segundo Marc Ferro “gastos pela guerra, os mecanismos econômicos ameaçavam quebrar-se, o tecido social rasgar-se, a relação de autoridade desaparecer” (2.002, p.229). A guerra exigiu muito dos Estados envolvidos, de forma que quando de seu término, os atores internacionais, tanto os beligerantes, quanto os espectadores, aspiravam por uma época de paz para que pudessem se recuperar. Afirma Adriano Moreira, que a guerra teve como conseqüências a “dissolução dos impérios centrais, revoluções internas não previstas e a revisão final da hierarquia das potências” (1.999, p.282), todos resultados que não foram cogitados quando de sua deflagração, tornando necessário um novo rearranjo do sistema internacional, tendo em vista que “o desequilíbrio e disfunção dos sistemas, cuja mais grave manifestação é a guerra, exige que o estado de natureza seja eliminado ou contido por uma nova ordem” (id, p.287). Esse novo ordenamento, ao contrário do sistema multipolar anterior, previa a existência de um organismo supranacional que regulasse as relações internacionais. Porém, no ordenamento internacional anterior, os vencidos eram reintegrados ao sistema, fato que não ocorreu imediatamente no caso da Alemanha.

Pelo acordo de paz, a Alemanha perdeu suas colônias e cedeu territórios aos seus vizinhos, conseqüentemente sua população foi reduzida, suas jazidas de carvão passaram a ser exploradas pela França, além das reparações em espécie que deveria pagar aos aliados, redução do exército, assunção da responsabilidade pela guerra e suas conseqüências, à essas condições podem ser acrescidas ainda, à situação interna alemã que se encontrava conturbada, com movimentos políticos tanto à direita, quanto à esquerda, além dos grupos desmobilizados do exército que atuavam como mercenários dentro de seu território. Solapar a economia do inimigo passou a ser um objetivo de guerra, tanto quanto lhe infligir uma derrota militar (Carr, 2.001).

É possível traçar paralelos entre o que os teóricos do poder consideram como elementos necessários e usados para medir o poder de um Estado, fator geográfico, populacional, recursos naturais, recursos militares e moral nacional, e a situação que o tratado de Versalhes impôs à Alemanha. Partindo do pressuposto realista de que as relações entre Estados são relações de poder, nas quais, cada um busca obter mais fatores de persuasão que o outro a fim de equilibrar a balança de poder a seu favor e como demonstrado, a economia era a fonte do poder da Alemanha, pode ser percebido que a preocupação principal era alterar a balança de poder na Europa, em favor da França, que se utilizou de todos os recursos ao seu alcance para atingir seus objetivos, na tentativa de transformar a Alemanha em um Estado fantoche nas mãos das grandes potências. Adriano Moreira traça considerações sobre o uso operacional da balança de poder, que serve como “instrumento destinado a promover interesses ou alcançar objetivos” (id, p.235).

A idéia de equilíbrio de poder que remete à “mecânica do poder”, basicamente pode ser entendida como sendo a contenção de uma potência pelas demais que fazem parte do sistema internacional. Segundo Martin Wight, “a história demonstra claramente que o equilíbrio do poder é a política por intermédio da qual a maior parte dos Estados procuraram, na maioria dos casos, obter sua auto-preservação" (2.002, p.185). Estas reflexões estão baseadas no pensamento hobbesiano de que os Estados e os homens competem, tentando impor seu domínio uns sobre os outros. Para Hobbes, “o poder de um homem (universalmente considerado) consiste nos meios de que presentemente dispõe para obter qualquer vivível bem futuro” (1.988, p.53). Para Wight (2.002), todos os Estado estão sujeitos a configurações de poder, sendo que uma potência tem maior liberdade para modificar essa configuração, tendo em vista a influência que exerce sobre seus vizinhos mais fracos.

Dessa forma, apesar de todo o revestimento de legalidade que o Tratado de Versalhes procurou emprestar às ações dos Aliados com relação a Alemanha, na ânsia de satisfazer os próprios interesses, não se levou em conta os sentimentos que poderiam ser despertos dentro da própria Alemanha, avessa aos termos do tratado de paz. Vale lembrar ainda que a transição do regime semi-absolutista do kaiser Guilherme II para o regime parlamentar da República de Weimar após a Primeira Guerra Mundial, ocorreu de forma repentina e foi inesperada para várias camadas da população, ficando associada de forma desagradável com a derrota na guerra. Segundo Norbert Elias, “desde os primeiros momentos do período de Weimar, muitos homens e mulheres manifestaram, de fato, o desejo de ver um homem no topo, fosse ele príncipe ou ditador, que tomasse as decisões e desse as ordens” (1.997, p.261).

A própria constituição da república de Weimar deixa entrever esse desejo latente e possível paradoxo entre império e república. Em seu artigo primeiro, que diz: “o Reich alemão é uma República” (Claude Klein, 1.995, p.91). Segundo comentários do autor, a menção à república só aparece neste artigo, sendo que o restante do documento trata o Estado alemão como um reino. Os aliados alimentaram esse desejo alemão ao permitir que a república proclamada tivesse como dirigentes membros do antigo regime. Conforme afirma Wight, “o Acordo de Versalhes foi o único acordo geral de paz que conferiu à potência dominante derrotada um maior domínio potencial sobre a Europa do que aquele que de fato havia levado à guerra” (2.002, p.204). Quando executado, conferiu à Alemanha uma importância que ela não possuía antes da guerra, uma vez que deixava os vencedores dependentes das compensações que deveriam ser pagas.

Partindo dessa afirmativa, é possível levantar hipóteses sobre o sucesso que o partido nazista teve junto à população, pois o desejo latente de um líder, somado aos altos e baixos que a República de Weimar sofreu, deixou a situação propícia para um movimento de massas que no imaginário popular representasse uma tábua de salvação. Hitler chegou ao poder com o apoio majoritário da população alemã e a classe dirigente via sua ascensão como um obstáculo ao comunismo e a possibilidade de liberdade de ação dentro do Estado.

As massas foram levadas a acreditar que ele poria fim a crise econômica e a inflação que as atingia. Porém, segundo o historiador Jacques Droz “a partir do momento em que Hitler tomou conta do poder, a Alemanha transformou-se num país militarizado” (1.999, p.97). Hitler assumiu o governo e começou a realizar movimentos a fim de garantir a auto-sustentabilidade da Alemanha em caso de guerra, bem como principiou o rearmamento do Estado. A propaganda passou a ser massivamente empregada, mobilizando toda a nação. Aos poucos Hitler, foi transformando a constituição, alterando leis fundamentais, “criando um Estado unitário, autoritário e popular” (Droz, 1.999, p.98).

Em 1.938, a Áustria e os Sudetos (região de língua alemã da Tchecoslováquia) foram anexados por Hitler. A expansão para o leste teve prosseguimento com a invasão da Polônia, em 1.939, ocasião em que o conflito foi oficialmente reconhecido. A Inglaterra, que havia tentado apaziguar os desejos expansionistas de Hitler, contemporizando suas ações, se viu compelida com este ato a cumprir sua palavra de que protegeria a Polônia em caso de ataque alemão.

Segundo Droz (1.999), graças ao preparo superior em armamentos e suprimentos, nos três primeiros anos da guerra, a Alemanha obteve vários sucessos; as ocupações da Polônia (1.939), França (junho 1.940), Iugoslávia e Grécia (maio 1.941) e finalmente contra os russos, conquistando extensos territórios do Cáucaso ao Golfo da Finlândia (1.941-1.942). O expansionismo alemão foi detido novamente pela ação conjunta das principais potências do cenário internacional (Estados Unidos, Inglaterra, Rússia e França) e os demais países do sistema internacional contrários à Alemanha. Assim, em 1.945, as tropas aliadas invadiram a Alemanha, forçando sua rendição.

Conforme afirma Oliveira-Ramos, com a capitulação do Estado alemão, os aliados desenvolveram um plano para “assegurar que a Alemanha não voltasse a perturbar a paz mundial” (1.995, p.144). O Estado alemão foi partilhado em quatro zonas de influência, cabendo a administração de cada zona a uma das potências vencedoras, que as ocupou, inclusive com tropas. Tendo em vista o alinhamento existente entre Estados Unidos, França e Inglaterra, as zonas sob administração desses Estados acabaram unificadas, sob o nome de República Federal Alemã, enquanto que à parte administrada pelos russos, coube a denominação de República Democrática Alemã.

 O historiador Droz afirma que “desde logo estava realizada a cisão entre os dois Estados” (1.999, p.118). Isso se deu devido às diferenças ideológicas que norteavam os regimes que administravam os dois territórios alemães. A Alemanha, dividida em duas, teve cada parte de si sob a influência de um dos pólos de poder que principiavam a se definir – Estados Unidos e União Soviética - evoluindo ao período conhecido como Guerra Fria.

Preocupados com a instabilidade do continente europeu, os Estados Unidos elaboraram um plano de reconstrução para a Europa, o Plano Mashall, que injetou em 1.947, quantias consideráveis para financiar a retomada do crescimento no pós-guerra. Neste período pós-guerra, a Europa Ocidental deparava-se com três problemas que urgiam solução, eram eles, o perigo de guerra, tanto com a União Soviética e seus aliados, quanto entre a França e a Alemanha; a fome e a dependência de alimentos vindos do exterior.

Segundo Arnaud (1.996) os secretários de Estado para Relações Exteriores dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, solicitaram em 1.950 que Robert Schuman, ministro para Assuntos Exteriores da França, apresentasse uma proposta para a integração da Alemanha Federal no contexto ocidental. A solução encontrada foi um modelo de integração e cooperação que tornaria qualquer guerra um ato impensável e materialmente impraticável. Dessa forma, Schuman propôs a criação de uma associação para administrar a produção franco-alemã de carvão e aço, denominada de Comunidade Européia do Carvão e Aço (CECA). Iniciava-se o complexo processo de integração econômica, que no final dos anos 90 do século XX culminaria na União Européia. A Alemanha tornou-se uma espécie de Estado tampão dividido, que servia tanto para conter o comunismo de leste, quanto o capitalismo do oeste. O muro de Berlim, erguido pelos russos, a fim de demarcar a divisão do ocidente com o oriente, tornou-se o marco de tal disputa.

Com o colapso da União Soviética, no final dos anos 80 do século XX, começaram as negociações para a reunificação das Alemanhas. A queda do muro marcou esse momento de reunião. Entretanto, conforme artigo do jornalista Clóvis Rossi, “o muro de Berlin libertou um fantasma” (Folha de São Paulo, 04.11.1999), esse fantasma aludido no artigo, era o medo na Europa do ressurgimento do desejo expansionista alemão que havia marcado a primeira metade do século XX. Esse receio surgiu porque a Alemanha na época da reunificação era a terceira potência econômica mundial, acrescentando à sua população mais 20 milhões de pessoas, totalizando uma população de 80 milhões de habitantes. Além disso, as tropas estrangeiras que ocupavam seu território desde 1.945, começaram a ser evacuadas.

Para refletir as realidades do mundo no século XXI, após a queda do muro de Berlim e do fim da Guerra Fria, surgiram discussões sobre a necessidade de incluir o Japão e a Alemanha reunificada nos órgãos internacionais de decisão, de forma a reconhecer o status de segunda e terceira potências econômicas, respectivamente, sendo que representavam importantes provedores de fundos internacionais. Essa necessidade previa também a inclusão dos dois Estados, como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Entretanto, a alegação norte-americana, no ano de 2.002, de que o Iraque possuía armas de destruição em massa, e sua insistência para que o Conselho de Segurança da ONU deliberasse a favor de uma intervenção armada contra aquele país, veio encontrar a França e a Alemanha, inimigas históricas, afinadas na oposição do uso da força para resolver a situação que se configurou no Iraque.

 Essa situação demonstrou a existência de divergências de opinião dentro da União Européia que já podiam ser vistas com relação ao Euro, a moeda da União Européia, adotado em 01/01/1999 por quase todos os Estados membros, com exceção da Inglaterra que prega revisões no modelo de integração, para que o objetivo proposto seja atingido. Segundo as palavras de seu Primeiro Ministro, Tony Blair, em discurso proferido perante o European Research Institute, em 23.11.2001: “a conclusão a extrair desta argumentação não é a de que devemos aderir ao Euro em quaisquer condições econômicas, mas antes a de que, caso as condições econômicas sejam satisfatórias, não devemos ser impedidos de aderir”. A preocupação dos britânicos pode ser entendida de forma simples como o receio de que a adesão ao Euro comprometa a conversibilidade da libra.

Apesar de seu histórico bélico, o que se viu, porém, foi outro tipo de atitude por parte do Estado alemão, que apesar de ser a primeira potência econômica da Europa continental e principal membro da União Européia, adotou e tem adotado uma postura conciliatória na situação de crise internacional atual que se configurou diante dos debates sobre a intervenção armada contra o Iraque. É possível perceber nesta postura alemã, um elemento presente, seja no período que este trabalho procurou compreender ou nos períodos subseqüentes que brevemente foram descritos, o fato de que a Alemanha desde sua formação lutou sempre para estabelecer e manter sua posição e projeção no cenário internacional, como potência de primeira grandeza, sendo um ator com acentuada capacidade de decisão e influência política, econômica e militar.


Referênicas Bibliográficas:

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FERRO, Marc. A Grande Guerra 1914 – 1918. Lisboa, Portugal. Edições 70, 1990.
HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo. Nova Cultural, 1988.
MOREIRA, Adriano. Teoria das Relações Internacionais. 3a edição. Coimbra, Portugal. Almedina, 1999.
OLIVEIRA, A. Ramos. Historia Social y Politica de Alemania. Vol. I. México. Fondo de Cultura Economica, 1995.
ROSSI, Clóvis. O Futuro da Alemanha, in Folha de São Paulo, Caderno Especial. Folha de São Paulo, 04/11/1989.
SOMBRA SARAIVA. José Flávio. Relações Internacionais Contemporâneas, da Construção do Mundo Liberal à Globalização- de 1815 a nossos dias. Brasília. DF. Paralelo 15, 1997.
WALTZ. Kenneth N. Teoria das Relações Internacionais. Lisboa. Gradiva, 2002
WIGHT. Martin. A Política do Poder. Brasília, DF. UNB, 2002.

Internet

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